Black Mirror e a possível abusividade dos planos por assinatura

30/04/2025 - Artigos
A crescente integração entre tecnologia e vida cotidiana tem transformado bens essenciais, como saúde, mobilidade, segurança e até mesmo autonomia pessoal, em serviços digitais condicionados a assinaturas recorrentes. No entanto, esse modelo de negócio, se não implementado com cautela e atenção aos aspectos legais, pode gerar riscos para as empresas de tecnologia, que podem se deparar com processos judiciais e multas consideráveis por práticas abusivas e violação dos direitos do consumidor.

Em um cenário cada vez mais dependente de serviços por assinatura e algoritmos, questões sobre privacidade, consentimento e abuso de poder econômico tornam-se centrais.

Diante do avanço de práticas comerciais cada vez mais sofisticadas e muitas vezes prejudiciais, é essencial que os consumidores estejam atentos aos seus direitos e empresas estejam cientes das limitações de seus produtos e serviços ou, em última análise, modulem o risco do serviço oferecido.

A série Black Mirror, famosa por abordar tecnologias contemporâneas e disruptivas, explora, no episódio “Pessoas Comuns”, um futuro em que a manutenção da consciência humana é convertida em um serviço por assinatura, cuja interrupção compromete a própria existência do indivíduo.

No drama, a personagem Amanda, para continuar a viver, passa por procedimento cirúrgico neural inicialmente “gratuito”, que iria restaurar suas funções cognitivas por meio de uma tecnologia que pode remover determinado tumor e substituir o tecido cerebral extirpado por tecido novo. Apesar da cirurgia ser “gratuita”, o uso da tecnologia depende de assinatura mensal, com valor inicial acessível, apresentando-se como uma proposta irrecusável para a protagonista.

Contudo, ao longo dos anos, o valor da assinatura vai se tornando cada vez mais abusivo, e as assinaturas mais baratas passam a conter ônus conhecidos na sociedade atual: o funcionamento defeituoso do serviço e anúncios de marketing, que, no caso de Amanda, estão literalmente implementados em sua cabeça.

Esse cenário distópico, embora fictício, serve de alerta para práticas comerciais atuais, como a degradação intencional de funcionalidades em dispositivos eletrônicos (obsolescência programada), contratos obscuros com renovação automática e a coleta abusiva de dados em serviços considerados “gratuitos” – em que os consumidores pagam com seus dados e tempo gasto, mas não dinheiro.

Exemplo costumeiro de prática abusiva envolvendo os planos de assinatura é o oferecimento de serviços gratuitos por um curto período, geralmente pelo prazo de sete dias, e, decorrido esse prazo, o serviço inicialmente gratuito começa a ser cobrado de forma imediata sem ter sido colhido o devido consentimento ou formal aceite do consumidor. Em muitos casos, o consumidor não se atenta ao prazo do período gratuito, e as empresas utilizam da inércia do consumidor como consentimento para iniciar as cobranças.

Sob a guarda do direito brasileiro, Amanda em Black Mirror, ou qualquer consumidor que lide com contratos obscuros ou renovações automáticas, é vítima de práticas abusivas praticadas por fornecedores. O artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) elenca diversas práticas abusivas que são vedadas, dentre as quais estão o fornecimento de serviços sem expressa solicitação prévia e elaboração de orçamento.

Em tese, podem ser consideradas abusivas as assinaturas que contam com renovações automáticas, ou mesmo que tenham cobranças iniciadas sem que o consumidor tenha expressamente consentido com a contratação. A despeito da crescente sofisticação dos mecanismos extrajudiciais que buscam atender aos direitos dos consumidores, há cada vez mais litígios envolvendo disputas consumeristas. De acordo com reportagem publicada no Anuário da Justiça São Paulo 2024, demandas de direito do consumidor crescem 42% na Justiça paulista de 2021 para 2022[1].

Neste contexto, o Tribunal de Justiça de São Paulo, ao julgar a Apelação Cível nº 1001078‑11.2021.8.26.0120[2], considerou abusiva a cláusula de renovação automática e determinou a restituição integral dos valores pagos indevidamente pelos consumidores. De modo semelhante, em 2018, consumidores da Tesla ajuizaram ação coletiva após a fabricante cobrar taxa extra de US$ 5.000,00 para ativação do recurso de piloto automático em seus veículos. A Tesla acabou firmando acordo com os consumidores e restituindo os valores cobrados de forma indevida.

As empresas de tecnologia que atuam nesse mercado devem estar atentas aos riscos jurídicos que a prática de serviços por assinatura pode acarretar. A falta de clareza e transparência na comunicação com o consumidor, a utilização de cláusulas abusivas em contratos, a cobrança indevida e a falta de mecanismos eficientes para o cancelamento do serviço podem gerar processos judiciais e multas consideráveis. Para evitar tais situações, é fundamental contar com um olhar de cuidado especializado na estruturação de contratos, políticas de privacidade, termos de uso e outras documentações essenciais para garantir a segurança jurídica da empresa e a satisfação do consumidor.

Desta forma, empresas que oferecem serviços por assinatura devem ir além da mera conformidade legal, adotando práticas proativas de compliance, boa-fé e transparência. É fundamental destacar, em linguagem acessível, os valores dos planos e indicar claramente as datas de renovação automática. Também devem colher o fornecimento [consentimento/aceite?] de forma eficaz e inequívoca, por meio de mecanismos como check-boxes independentes, além de alertas prévios por SMS e e-mail, enviados com antecedência de qualquer cobrança automática. Além do mais, o cancelamento deve ser simples, facilitado e imediato.

A ficção de Black Mirror, ao retratar de forma extrema a dependência de serviços por assinatura e a opacidade contratual, serve como alerta para situações reais em que a autonomia do consumidor é mitigada por cláusulas abusivas, renovações automáticas, contratos de adesão e cobranças indevidas.

Caso se sintam lesados — moral ou materialmente —, os consumidores devem buscar a reparação dos danos sofridos, exercendo seu direito de acesso à informação, consentimento prévio e proteção contra práticas lesivas. As empresas, por sua vez, devem adotar práticas transparentes e éticas, indo além do mínimo legal, para fortalecer a confiança do mercado, manter uma boa reputação e evitar que a distopia da ficção se torne nosso cotidiano.

Em suma, a crescente integração entre tecnologia e vida cotidiana exige das empresas uma postura ética e transparente, principalmente no que diz respeito aos contratos de assinatura. A série Black Mirror, com seu futuro distópico, serve como um alerta para que as empresas de tecnologia, em vez de se tornarem reféns de um ciclo de exploração, promovam a confiança e a segurança por meio da clareza, da acessibilidade e do respeito às necessidades dos seus clientes. Afinal, a confiança é o alicerce da inovação e da construção de um futuro tecnológico mais justo e humanizado.

Autores: Henrique R. Guilherme Oliveira da Silva Cezar Najjarian


[1] DOLZANE, Rodrigo. Demandas de Direito Privado explodem na Justiça paulista. Consultor Jurídico, 19 mar. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 23 abr. 2025.

[2] (TJSP, 18ª Câmara de Direito Privado, Apel. nº 1001078-11.2021.8.26.0120, Rel. Des. Israel Góes dos Anjos, j. 24.07.23)

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